SONHEI ÁGUAS DE KALANDULA NA LAGOA DE SANTO ANDRÉ

Gostaria que este fosse um texto para celebrar os 50 anos da independência de Angola, mas é apenas um “lamento de exilado”, como escreveu o meu saudoso amigo Inácio Rebelo de Andrade.

Por Tomás Gavino Coelho

Faz hoje 50 anos que saí fisicamente do meu chão natal, refugiado num Portugal que me acolheu e a quem estou grato, fugido de uma guerra civil atroz, magoado com o insulto que ouvia diariamente “branco, vai p’rá tua terra!”, vociferado por miúdos armados e de arma apontada, primeiros sinais da desgraça que se anunciava, num tempo em que vivi e assisti a episódios que talvez venha a contar um dia, mas que vou calar por agora.

E foi num país diferente, do qual apenas conhecia a língua, que a vida me foi acontecendo, mas sempre com Angola em fundo.

Fui mantendo em mim o secreto desejo de regressar ao meu chão, porque queria que os meus filhos vissem onde nasci, os sítios onde brinquei, onde cresci e fui feliz.

Assim, apesar do gigantismo de Angola e de eu ser apenas uma pequena migalha procurei, durante todos estes anos, contribuir com as melhores formas que encontrei para me sentir útil junto daquela que até hoje considero a minha terra, e fi-lo através da Cultura, tentando contribuir para o percurso de uma governação que muito pouco investe na instrução e na educação.

Fiz revisões de livros, indiquei novos autores a editoras em Portugal, participei o mais que me foi possível em tertúlias, palestras, lançamentos e outros eventos literários, escrevi prefácios, apresentei obras, dei a conhecer novos autores, e doei livros para que o Rui Filipe Ramos os distribuísse na sua cidadã e patriótica intervenção em criar bibliotecas junto dos mais desprotegidos.

Para além de participações em trabalhos colectivos, dediquei mais de uma década da minha vida a elaborar uma recolha de todos os autores(as) e escritores(as) nascidos(as) em Angola, desde 1642, trabalho que felizmente já tem a continuidade assegurada por mais algum tempo, graças ao empenho de alguns jovens angolanos que perceberam o alcance do trabalho.

Procurei, solidariamente, contactar a diáspora angolana em Portugal, em toda a sua variedade e sempre que me foi possível, fossem escritores, académicos, jornalistas, políticos, estudantes, músicos, gente do teatro, do cinema e de todas as outras profissões, criando amizades boas, sólidas e cúmplices.

Durante todos estes anos mantive a esperança num país melhor e, mesmo à distância, procurei manter-me actualizado e atento, tentando perceber e contextualizar os erros, fazendo um esforço para que as minhas críticas e opiniões fossem sempre construtivas.

Acreditei, sim.

Mas a chocante realidade em que o país continua mergulhado, sem que se vislumbrem melhorias a curto ou a médio prazo, tem vindo a destruir os sonhos que ainda pudesse cultivar, porque sinto que já não me resta tempo de vida para ver Angola num caminho onde “o que importa é resolver os problemas do povo”.

A seguir ao ano trágico de 1977, cuja carnificina tem forçosamente que pesar em muitas consciências, tive breves, brevíssimos, lampejos de esperança com as primeiras eleições livres de 1992, com o fim da guerra civil em 2002, e com as eleições de 2017, quando pareceu pairar uma lufada de ar fresco na governação.

Mas nada mudou e o partido-estado logo retomou a sua postura de total domínio político e acentuado controle de opinião.

De desilusão em desilusão o sonho do regresso foi-se desvanecendo.

Sonhei, sim, mas hoje sei que os sinais da desgraça sempre lá estiveram, mesmo que na altura não os visse (ou não soubesse ainda ver).
Durante a minha vida em Portugal fui estudando a História de Angola, lendo obras, ouvindo e conversando com especialistas, para tentar aprender e entender o percurso angolano, as vitórias conseguidas, os erros cometidos, o porquê das coisas.

Uma das desgraças foram as divisões territoriais, impostas a régua e esquadro pela Conferência de Berlim, que mergulharam o Continente em lutas tribais e étnicas, inevitáveis e que ainda hoje se manifestam, alimentadas pelo cínico incentivo e aproveitamento das grandes potências mundiais.

Por isso a frase “Angola de Cabinda ao Cunene” é uma falácia, sempre foi.

Os sinais das desgraças futuras sempre estiveram lá, nas lutas de libertação, onde os grupos rivais, autoproclamados movimentos, uniões e frentes, se batiam entre si, em recontros sangrentos, em vez de se unirem contra o inimigo comum.

Quando se proclamou a independência os sinais da desgraça ficaram definitivamente visíveis, a guerra pelo poder ultrapassou todos os limites da sanidade, mantendo Angola num mosaico de etnias e grupos que nunca se entenderam nem se querem entender, porque nunca se aceitaram dentro de uma única fronteira.

Angola é, hoje, cinquenta anos depois, um país onde existe uma minoria cleptocrata obscenamente milionária, que vive à custa dos recursos de um país rico, espoliando uma esmagadora maioria de pessoas que luta diariamente para comer, e onde milhares de crianças vivem na rua e fora do sistema escolar.
Um país onde a água potável não jorra das torneiras e a energia eléctrica é coisa incerta que necessita de geradores, apesar da invejável rede hidrográfica existente no território nacional.

Um país onde o luxo vive ao lado da miséria, onde as torres milionárias convivem com bairros de lata, onde o lixo é rei, um país que despreza o património histórico e promove um mau funcionalismo público onde apenas importa o cartão partidário e não a competência.

Não é, certamente, o país que sonhei, que muitos sonharam.

“Não foi isto que combinámos!”, afirmou um dia um mais-velho que lutou e sofreu por esse sonho.

Portugal e Angola viveram sob o jugo de uma feroz ditadura, mas enquanto os portugueses conseguiram derrubá-la e aprenderam a viver em democracia, os angolanos ainda não conseguiram libertar-se do regime autocrático e ditatorial que se instalou logo após a independência.

Não há ditaduras boas, por mais disfarçadas que estejam e apregoem democracia.

O meu coração secou nos últimos dias do mês de julho de 2025 com as terríveis imagens das pilhagens, da violência policial, das mortes, um sinal claro de que o povo angolano não tem só fome de comida, tem fome de muito mais coisas que a governação não sabe ou não quer ver.

Foi a gota que fez transbordar o dique da minha desilusão e tristeza acumuladas e me aproximou de um sentimento que não quero ter, a indiferença.
Por isso, para não chegar à indiferença, e enquanto se mantiver o estado das coisas, vou tentar afastar-me emocionalmente por uns tempos, vou olhar agora para outras direcções, para outras vidas e outros mundos que também me interessam e que tenho descurado por ter estado demasiadamente focado numa Angola em que quis acreditar.

Contudo, nunca deixarão de estar comigo as amizades, os livros e as memórias do “antigamente da vida”.

Até sempre, Angola.

MANIFESTO

Ali
bebendo um café
num Rossio de Mutambas
sonhei águas de Kalandula
na lagoa de Santo André.
Vi num sonho verdadeiro
as palmeiras do Mussulo
na ilha do Pessegueiro.
Ali
Num abraço forte e longo
os altos da Serra da Estrela
dizem segredos meus
às pedras de Pungo Andongo.
Sonhei nocturnos sulanos
areias do Namibe dormindo
nos campos alentejanos.
Ali
um pássaro constrói o ninho
carrega no bico o Mayombe
e canta,
com trinos do Minho,
quitandas do mundo inteiro,
pregões da Feira da Ladra,
vivências do Roque Santeiro.
Ali
existe um Porto sentido
e um semba enrolado desmaia
num fado falado e gemido.
Ali
brota livre uma canção
e é ali mesmo no meio
que ondula o meu coração.

Visitado 85 times, 85 visitas hoje

Artigos Relacionados

Leave a Comment